Será que os Quadrinhos de Super-Heróis não nos ensinaram nada?
Ou "Por que tantos leitores de quadrinhos são
preconceituosos com homossexuais, ideias igualitárias e as mudanças ocorridas
na sociedade?"
É triste, em pleno século XXI, perceber que boa parte da
humanidade, em vez de evoluir, parece cada vez mais se apegar a conceitos
antiquados e preconceituosos. E se já é ruim que esse tipo de pensamento
retrógrado venha de representantes da mídia ou de políticos colocados
erroneamente em posições de poder, não é mais aceitável que venha de pessoas
que se dizem “amantes de quadrinhos”.
Será mesmo que conseguimos passar nossas vidas todas lendo
aventuras de Super-Homem, Capitão
América, Homem-Aranha, X-Men e tantos outros sem que tenhamos
entendido a mais simples verdade que todo gibi de super-herói ensina? Que os
mais fracos merecem ser protegidos e que todos têm o direito à felicidade?
Para muitos fãs de heróis fantasiados, Steve Rogers, o
Capitão América, é um modelo de virtude a ser seguido. Criado por Jack
Kirby e Joe Simon em 1941, o personagem surgiu primariamente
como um símbolo contra o nazismo, que à época parecia ameaçar todo o mundo. Os
nazistas, muitos parecem esquecer, não apenas tentaram dominar o planeta e
eliminar os judeus, como também pôr fim às liberdades pessoais e
erradicar em larga escala os homossexuais ou, ao menos, a homossexualidade.
Estima-se que, entre 1933 e 1945, cerca de 50.000 homens e mulheres de inclinação
homossexual foram presos e condenados à prisão ou à morte em campos de
concentração na Alemanha. Se todos os fãs do Capitão América concordam que os
nazistas representavam o pior da humanidade, que eram um império maligno que
cometia as piores atrocidades... por que alguns, pelo visto, acham que eles
estavam certos em sua perseguição aos gays?
Para essas pessoas, se o nazismo apenas perseguisse
homossexuais, o Capitão América é que seria o vilão por lutar contra Hitler e
seus asseclas? O mais estranho, talvez, é que muitos homofóbicos radicais
gostem de chamar o movimento que defende os direitos dos homossexuais de
“gayzismo”, como se a indicar que sentem-se oprimidos pela tentativa mais que
justa de uma minoria em levar uma vida digna.
Um herói que surgiu para defender o homem comum foi o Super-Homem. Inventado por Joe Shuster eJerry Siegel, dois garotos pobres de Ohio, ele apareceu em 1938 com a missão maior de proteger os fracos e oprimidos. Os dois jovens haviam passado suas vidas em meio às agruras da crise econômica causada pela queda da bolsa de valores em 1929 e as aventuras que criavam para Super-Homem não o mostravam em luta contra supervilões, mas contra as injustiças sociais e econômicas existentes nos Estados Unidos à época. O herói de Krypton enfrentava senhorios corruptos, industriais desonestos e milionários inescrupulosos, entre outros, e sua “batalha sem fim” era para dar oportunidades iguais aos menos privilegiados, dar a eles a chance de levar uma vida decente.
Mais de 70 anos após o surgimento de Super-Homem, ainda não
moramos em um mundo mais justo. As cotas raciais nas faculdades são repudiadas
imediatamente por uma legião geralmente mal-informada que vê na proposta algo
maligno e ofensivo, sem se preocupar em pesquisar a questão. Segundo dados
do IBGE, há cerca de 31,1% de jovens brancos, de idades entre 15 e 24
anos, matriculados em escolas de nível superior. Já entre os negros, o número
cai para 12,8%. Para muitos – que devem vibrar com as aventuras do Homem de
Aço, senão nos quadrinhos, ao menos nos filmes e séries de TV – parece
impossível entender que é muito difícil para um afrodescendente conseguir uma
chance de entrar na faculdade no Brasil. Sim, pode parecer um discurso carregado
de chantagem emocional, mas a verdade é que uma parcela grande da população
negra carrega séculos de preconceito e pobreza, após terem seus antepassados
trazidos ao Brasil como escravos e mais tarde libertados sem dinheiro, sendo
obrigados a trabalhar por valores ínfimos que lançaram muitos num estado de
subisistência. Antes de levantar a bandeira do “Sou contra”, vale se informar
melhor sobre a situação, no mínimo. Aprofundar-se nos argumentos dos que
defendem as cotas pode fazer muitos mudarem de opinião sobre a questão. Pode
acreditar, pois foi o que aconteceu comigo. E, novamente: será que lutar por
justiça e igualdade é algo nobre apenas nos quadrinhos e no cinema mas, na vida
real, o ideal é colocar os nossos interesses pessoais – e muitas vezes obtusos
– à frente de tudo e todos? Qualquer vilão da Marvel ou
da DC ficaria orgulhoso de atitude tão egoísta.
E a questão da justiça e defesa dos oprimidos e das minorias
não está presente apenas em uma questão polêmica como a das cotas raciais. Num
país de maioria pobre, os donos de automóveis ainda reclamam, brigam e xingam
porque os donos de bicicletas se “atrevem” a querer um pequeno espaço nas ruas,
“ousam” querer o direito de transitar em seus veículos de duas rodas pelas vias
principais. “Não”, dizem esses motoristas. “O lugar desses ciclistas não é nas
ruas. Se não podem ter um carro, que usem o transporte público. Se querem andar
de bicicleta, devem ficar confinados aos parques, para não nos incomodar.”
Seriam os parques, neste caso, o equivalente à Zona Fantasma, para onde eram
enviados os elementos indesejados da sociedade kryptoniana? Pois é, esse tipo
de lição alguns parecem tirar dos quadrinhos... Mas vale lembrar que não é
porque a presença de alguém nos incomoda, que ele não tenha o direito de estar
ali.
Temidos e odiados
Mas, não importa o que se diga, são mesmo os homossexuais os mais perseguidos pelos leitores preconceituosos de super-heróis. Pra começar, eles gostariam que seus gibis nem mencionassem a existência de homossexuais, quanto mais que aparecessem neles personagens em relacionamentos homoafetivos. A desculpa de alguns é que “crianças não deveriam ser expostas a esse tipo de comportamento”. Claro, como se houvesse mesmo muitas crianças ainda lendo HQs de super-heróis atualmente. Para quem não sabe, os quadrinhos da Marvel e da DC são lidos, hoje, por adolescentes e adultos. E, mesmo que crianças sejam “expostas” ao estilo de vida dos homossexuais nos quadrinhos, isso seria apenas um reflexo do mundo atual, algo que elas verão de um jeito ou de outro. Ou você vai esconder para sempre do seu filho que dois homens ou duas mulheres podem se amar da mesma forma que o pai e a mãe dele?
A verdade é que muitos parecem sentir sua própria
masculinidade ameaçada pela imagem de um herói como Alan Scott, o
primeiro Lanterna Verde da DC, beijando outro homem – na tão
comentada reformulação recente do personagem. E o argumento sempre é “não que
eu seja homofóbico, só acho que é errado mostrar isso nos gibis.” Ok, se isso
não é homofobia, o que é?
Durante quase duas décadas, a revista X-Men, da Marvel,
foi o maior sucesso do mercado de quadrinhos nos Estados Unidos. Esta criação
de Stan Lee e Jack Kirby sempre teve como tema recorrente o
preconceito dos humanos para com os mutantes, aqueles seres tão diferentes de
nós, com um estilo de vida que a humanidade não conseguia entender. Toda
revista dos X-Men explicava que aqueles heróis lutavam para defender “um mundo
que os teme e odeia”. E nós líamos e pensávamos: “Ó, como pode a humanidade ser
assim, tão imcompreensiva? Tão cabeça-dura? Perseguir os mutantes só porque
eles são diferentes? Isso é errado!” É, mas pelo visto tínhamos esses
pensamentos altruístas apenas no que se referia ao mundo mágico da Marvel. Por
que, na vida real, estilos de vida diferentes incomodam muita gente. Nos gibis,
quem nasce diferente merece compreensão, pois não têm culpa por isso. No nosso
mundo, porém, quem nasce diferente precisa ser escurraçado da sociedade e ter
seus hábitos, sentimentos e crenças modificados (ou “curados”) pois são
ofensivos. O roteirista inglês Alan Moore chocou muita gente quando
escreveu, na introdução de V de Vingança, que parte da mídia inglesa em
1988 defendia campos de concentração para pessoas com AIDS, enquanto o
governo de Margaret Thatcher dava sinais de que gostaria de erradicar a
homossexualidade no Reino Unido. Seguindo esse pensamento, não é difícil
imaginar que alguns sonham com a possibilidade de um futuro como o da clássica
história “Dias de um Futuro Esquecido”, de Chris Claremont e John
Byrne, no qual os homossexuais (e ciclistas, feministas e outros que pensem ou
ajam fora da norma estabelecida pela maioria) seriam perseguidos por robôs
gigantes e enviados a campos de prisioneiros... ou mortos, para eliminar de vez
o incômodo.
Até o Vigia, o alienígena da Marvel que a tudo observa, deve
virar o rosto para não ver algumas das coisas que fazemos e pensamos.
Com grandes poderes
Exemplos não faltam, nos quadrinhos, de lições que deveríamos ter aprendido para tornar o mundo em um lugar melhor, mais tolerante e mais justo. Então por que tantos fãs de quadrinhos se mostram tão resistentes a trazer estas lições para o mundo real? Como conseguiram ler durante décadas histórias sobre heróis que lutam contra injustiças, protegem os mais fracos e tentam fazer do mundo um lugar melhor onde todos têm os mesmos direitos, e mesmo assim continuam preconceituosos e com uma percepção tão limitada e mesquinha?
De que vale defender os méritos dos quadrinhos de
super-heróis se não mostrarmos que os bons exemplos que eles trazem podem ser
aplicados na vida real? Às vezes valeria a pena parar e pensar, frente a este
mundo moderno que parece trazer mudanças que muitos não conseguem entender: “O
que o Super-Homem faria?”
Não adianta esperar pela picada de uma aranha radioativa
para se tornar um herói do dia-a-dia. E, parafraseando uma das frases mais
famosas e importantes dos quadrinhos, vale lembrar que "com grandes
preconceitos... vem também grande mediocridade".
Por Maurício
Muniz
Originalmente postado no site Guia dos Quadrinhos http://www.guiadosquadrinhos.com
Um comentário:
Texto estupendo. Conseguiu me deixar extremamente tocado.
E claro, reflexivo em meu próprio universo de ação.
Abraços.
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