"Demônios à solta" não são mera figura de linguagem.
Eles aparecem logo no título do primeiro capítulo do livro Casagrande e seus
demônios, tratando daqueles fantasmas que rondam a vida de uma pessoa em
desequilíbrio físico e emocional. Os "demônios" ilustram bem a
reviravolta na vida de Walter Casagrande Júnior, que foi de ídolo do esporte a
viciado em cocaína e heroína. Casão, ex-jogador do Corinthians, querido da
torcida, integrante da Democracia Corintiana junto com Sócrates, e comentarista
da TV Globo, expõe sem firulas ao jornalista Gilvan Ribeiro, coautor do livro,
todo o seu declínio e restabelecimento.
Ricamente ilustrado, com um caderno recheado de fotos, a
publicação tem prefácio de Marcelo Rubens Paiva, amigo de sempre, que endossa a
hipótese de que tantas coisas boas, e outras tantas ruins, que permearam a vida
do ex-jogador dariam um bom roteiro para um livro. "Casão faz questão de
contar o inferno que viveu quando era viciado em drogas e sua internação, pois
para ele é fundamental passar adiante a experiência, dividir as dores da dependência
e alertar para os perigos de um vício frenético, sem preconceitos, desvios ou
mentiras. A verdade ajuda a sanidade".
Na publicação, Casagrande faz revelações inéditas como, por
exemplo, o doping que sofreu quando jogava na Europa. Mas foi na Europa que, em
quatro situações, Casagrande foi obrigado a se dopar pelo clube em que jogava.
Tomou uma injeção de Pervitin no músculo. "Isso realmente melhorava o
desempenho, o jogador não desistia em nenhuma bola. Cansaço? Esquece... se
fosse preciso, dava para jogar três partidas seguidas", conta. No entanto,
o jogador era radicalmente contra o doping e se negou a continuar fazendo uso
da droga. Foram oito anos na Europa, até ele voltar a atuar no Brasil.
Mas Casagrande e seus demônios, como a carreira do próprio jogador,
vai bem além das drogas. Fã de rock - especialmente de Janes Joplin e AC/DC -,
é amigo de roqueiros nacionais, como Rita Lee, a quem dedicou o "Gol Rita
Lee", no segundo jogo do Corinthians pelo Campeonato Paulista de 1982,
contra o São Paulo. "O Casagrande foi o jogador e é o comentarista mais
rock 'n' roll da história do futebol brasileiro", diz o publicitário
Washington Olivetto na quarta capa do livro. Ao comentar que o lado roqueiro
fez com que muitos jovens se identificassem com o atacante corintiano, Olivetto
diz que Casagrande "é o precursor de um personagem que começou a se
materializar fortemente na Europa a partir do Ronaldo Fenômeno. É o que eu
chamo de futpopbolista, cruzamento de jogador de bola com ídolo do pop".
Casagrande via seu cotidiano sempre em evidência, não só por
ser um ídolo no clube e na seleção brasileira, e por sua atuação política. Na
época da ditadura militar, mantinha longos cabelos despenteados, usava jeans
puídos e camisetas com slogans políticos. Desde menino, Casão fixava sua
atenção nos rumos dados pelo governo, era contra a prisão arbitrária de
oposicionistas ao regime, filiou-se ao PT quando o partido ainda era uma
legenda nova - e é lulista convicto até hoje. Foi, então, com naturalidade que
fez parte da Democracia Corintiana - termo batizado por Olivetto -, encabeçada
pelos jogadores Sócrates, Wladimir, Zenon. Para além da autogestão implantada
no clube, em que jogadores, comissão técnica e diretoria tinham poder de voto,
os esportistas usavam camisetas em que exibiam apelos políticos, como
Diretas-já.
O livro apresenta também um capítulo inteiro dedicado à
afinidade que Casagrande tinha com Sócrates. Ironicamente, os dois se viram
envolvidos com o vício - Casagrande com as drogas, Sócrates com o álcool. E por
conta dele, o Magrão, como Casa chamava o amigo, cometeu diversos deslizes, a
exemplo de chegar duas horas atrasado no casamento em que era padrinho.
"Não concordo com muitas coisas que o Sócrates fez, ou até mesmo deixou de
fazer. Acho que lhe faltava flexibilidade para usufruir a própria genialidade
na plenitude. Ele poderia ter tido influência no país de modo muito mais
efetivo", analisa o jogador. A ruptura aconteceu quando Sócrates insinuou
que Casagrande havia se "vendido ao sistema" ao aceitar o trabalho na
TV Globo. Sem bate-boca, os grandes amigos se afastaram. Só voltaram às boas
quando Magrão foi internado com hemorragia digestiva - que o levou à morte em
seguida. "Ainda bem que nos reaproximamos no final da vida dele. Senão, a
dor seria insuportável", testemunha no livro. No Diário de S.Paulo
publicou um texto em que contava sobre essa amizade tão importante. Suas
últimas palavras: "Tínhamos uma estreita aliança... Vou jogar meu anel
fora. Fazer o que com um anel pela metade?".
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